quarta-feira, agosto 31, 2005

Apontamentos para a compreensão de um novo corpo (1ª parte)

Quando decompomos o ser humano e a sua relação com os objectos que o circundam, um termo imediatamente desponta de modo a tentar solucionar o problema, este termo é a função. Termo que serviu de base intangível e incontornável no design durante as décadas nas quais o Moderno imperava e ditava os princípios e leis do design, não é, porém através dele que se devem estabelecer os primeiros preceitos relativistas do design, mas sim ao seu material e a sua organização. O design não deve ser restrito unicamente aos objectos de uso, mas igualmente e essencialmente, a nós mesmos.

O design, é pois encarado como uma disciplina que estabelece o elo de ligação entre o corpo e a sua extensão momentânea, ou seja, o objecto. De uma adaptação às coisas, a técnica moderna apresenta-se como uma exploração, como criação. O homem, por seu lado, é, num mesmo tempo, uma linguagem e um utensílio, no qual o problema das origens do segundo é análogo ao das origens da primeira; o homem possui sempre uma técnica, do mesmo modo que sempre possuiu uma linguagem.

O busílis da questão reside na capacidade de os objectos conseguirem serem extensões do nosso ser, não só de uma forma pragmática e funcional, mas sobretudo como elemento de relacionamento. Os objectos revelam-se elementos inerentes ou elementos intervenientes, e desta última forma, uma extensão do próprio ego, não como algo que nos é alheio, e por vezes repulsivo, mas como órgão adicional, como upgrade. Neste sentido, é a técnica, ou o hardware, que vai completar, como um prolongamento do corpo, cada acção particular e determinada, agindo como se o objecto fosse o criador activo do próprio criador, sendo este último relegado para a classificação de objecto.

Eis que se coloca em causa o significado de objecto. Desde cedo tido como tudo aquilo que se opõem ao sujeito, o que é de algum modo muito inconsistente, pois a relação a Eu-sujeito um Outro sujeito passará inevitavelmente a objecto, o que nos indica uma divisão vaga e imprecisa. Assim, o objecto deixa então de ser o não-eu do sujeito para fazer parte integrante de um corpo que tem vindo progressivamente a tornar-se lugar de crise, aberto a novos significados.
Por seu lado, o objecto sofre profundas alterações, enquanto categoria. Vulgarmente reconhecido e tido como mundo do qual o corpo se destacava e encontrava a sua diferença, o objecto passa a fazer parte integrante de um sujeito, de um corpo, constituindo uma nova ordem dialéctica entre sujeito e objecto.

Perguntámo-nos, legitimamente, o que significa para nós os objectos, no entanto outra questão se eleva: o que significa para nós aquilo que nós próprios somos. Vejamos a questão dos significados; lavámo-nos, vestimo-nos, desenhamos, pintamos ou escrevemos. As mãos revelam-se determinantes nas acções executadas, mas é somente quando se prolongam para além dos seus limites do nosso ser físico que as apreciamos devidamente, mas esse prolongamento só foi permitido por um dispositivo técnico, um lápis, um pincel, ou uma máquina de escrever. Podemos, no entanto, aniquilar todos os utensílios e passar, por exemplo a comer com os dedos ao invés de utilizarmos a faca, garfo ou colher, mas aí perder-se-ia parte importante de tudo aquilo que nos distingue das restantes espécies animais, a capacidade de projectar facilidades e extensões.

O corpo deverá ser entendido como um corpo-aberto, como material de trabalho e transporte dos avanços da técnica e da tecnologia.”O homem é um animal creans…não uma constante repetição” 1

Otl Aicher, na sua obra “Analogous and digital”, faz uma importante consideração sobre esta relação entre ser e objecto: “A spider is not just a spider in terms of its body, its web is part of it as well. It would starve without a web. So what is a spider? Is it a living creature or is it a living creature plus catching device? Is it singular, or the center of a system that is only capable or survival as whole? We can only see the spider in association with the web that it produces, as a life system, not a living creature, the spider is an organizational form.”

O que parece considerável é que se compreenda que somos seres que vivem essencialmente dos artefactos e das capacidades que possuímos em usufruir deles, sendo nós parte desses artefactos tal como eles são parte constituinte de nós mesmos.

Gera-se, desta forma um novo materialismo, no qual o cérebro não é um órgão autónomo, mas interdependente e interligado a todos os outros órgãos que nos constituem. A única espiritualização possível é fomentada através dos objectos e pelos objectos.

Só assim se compreende as carências efectivas do uso da tecnologia nas mais diversas eras, podendo inferir que, enquanto que o homem antigo se resignava com a ausência da tecnologia, o homem moderno se resigna com a sua presença, ou melhor, com a sua omnipresença. A antiguidade não possuía uma verdadeira tecnologia mas possuía a virtualidade de uma tecnologia. Perguntamos então porque é que não passou da possibilidade à realidade, podendo-se para isso invocar a insuficiência energética ou a pobreza dos materiais, mas o nível técnico de uma sociedade é explicado também pelo seu imaginário, ou seja, o conjunto de representações e ideais-objectivos de cada cultura que traduz a vontade politica dos homens em realizações materiais; a existência de conhecimentos, materiais e possibilidades técnicas é a condição necessária ao desenvolvimento das forças produtivas, mas não uma condição suficiente: a realização das virtualidades tecnológicas depende do enquadramento mental colectivo que as aprova e estimula, ou as despreza e anula.

O fenómeno técnico dos objectos está intrinsecamente relacionado com a importância épocal que se atribui a esses mesmos objectos. Deste modo assume primordial importância os meios perceptivos assistidos pelo pensamento, o homem pensa analogamente, ou seja, vê pensando, assim reconhecimento e pensamento podem estar separados a nível de conceito, mas de facto estamos a lidar com dois aspectos de um mesmo processo.

Um ser digital surge então pelo desenvolvimento tecnológico, psicológico e sociológico, sobretudo a partir da existência do computador, que introduz mudanças radicais na estrutura societal da cultura quotidiana, pois a simples vivência passou a adquirir uma segunda existência, expressa em valores, números e quantidades.

A tecnologia é, actualmente, a substituição digital dos órgãos outrora mecânicos, ou seja, revela-se como extensão do próprio corpo que aproxima, cada vez mais, o homem das suas realizações mentais e materiais.

1- Borges, Anselmo, “Corpo e transcendência”, Fundação Eugénio de Almeida, 2003

Antonieta Soares da Costa


terça-feira, agosto 30, 2005

Acerca da conferência "O design na era digital"

Após uma primeira apresentação deste blog aquando do Cumulus Lisboa 2005, organizou-se uma conferência que pretendeu debater os diversos modos de pensar esta disciplina que é o design, focando o seu raio de acção na era digital. Esta conferência teve lugar na ESAD_ Escola Superior de Artes e Design de Matosinhos, no dia 17 de Junho.
Este post pretende demonstrar a pertinência desta conferência assim como, embora tardiamente, apresentar um breve resumo do que foi exposto. A conferência contou com a presença dos designers Luís Inácio, Dino dos Santos, José Luís Ferreira e do Eng. José António Simões, sendo moderada pelo Dr. José Bártolo, servindo ainda para uma apresentação mais detalhada dos propósitos deste blog. A intervenção do designer Luís Inácio, responsável editorial do site www.designio.com.sapo.pt, remeteu para a consciencialização da mortalidade do sujeito na sua relação com a técnica. Tomando como ponto de partida a etimologia do “osso”, Luís Inácio desenvolve uma análise da técnica, ao longo da história da humanidade, fundamentando a sua tese na obra de Régys Debray. Nesta apresentação, Luís Inácio, expõe a relação mediológica entre a filosofia e a técnica, tentando, deste modo, seguir o caminho de Debray, remetendo para as camadas sucessivas que vão surgindo a cada salto tecnológico e a relevância desta análise para o design. O designer Dino dos Santos, responsável pela www.dstype.com, apresentou um recente caso de estudo, e partindo desse caso, extrapolou para uma análise acerca da figura da tipografia como elemento para uma busca arqueológica. A apresentação do tipo Andrade (inspirado na obra
Nova Escola Para Aprender a Ler, Escrever e Contar de Manoel de Andrade de Figueiredo, 1722) serviu como ponto de partida para uma compreensão da história da tipografia portuguesa e, baseando-se no digital, para uma recuperação desses mesmos valores históricos. Alertando para o facto de o design contemporâneo se rever em si próprio, criando um novo hedonismo, e como tal, uma estética narcísica, propôs uma compreensão da história, seus ímpetos e suas idiossincrasias, como modo de rever os pressupostos de acção do projecto contemporâneo. O designer José Luís Ferreira, docente na ESAD e um dos responsáveis pelo INDI_ Investigação em Design Industrial, abordou a questão do digital pelo uso. Assim, fundamentou a sua exposição numa relação entre hardware e software, e destas, com o design industrial. Apresentou um conjunto de projectos desenvolvidos pelo INDI, remetendo para a metodologia projectual assente numa compreensão optimizada dos meios de modelação e concepção de produto. Revelar os meios digitais como amplos simulacros do real até à própria superação do real pelo digital, expondo-os como elementos imprescindíveis ao exercício criativo. A finalizar o quadro de oradores, o Eng. José António Simões, trouxe uma reapreciação da metodologia de projecto, sustentada na experimentação digital, para o desenvolvimento de sistemas protésicos. Apresentando o digital numa perspectiva distinta, como charneira entre o projecto e a engenharia, mas sobretudo como precioso aliado na experimentação laboratorial de novos componentes protésicos. Na ausência da cobaia humana, o digital assume um papel fundamental, quer como simulador de cargas, resistência e durabilidade de materiais, quer como um sistema enriquecedor da investigação e desenvolvimento de próteses.
Esta conferência teve o condão de espicaçar a reflexão acerca do mundo digital, de modo a que possamos conduzir o projecto de design para algo mais que a mera aceitação do digital como uma circunstância, mas percebendo-o nas suas diversas vertentes.

O blog esteve de férias prometendo, a partir deste momento, uma actividade constante.

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