terça-feira, novembro 27, 2007

Desdobrar os objectos, uma alternativa de futuro

Abstracto

Dentro da experiência moderna em que nos inserimos com todas as definições ambíguas que a possam caracterizar, o percurso e o tempo cronológico que ainda falta percorrer para entrar numa nova era, são certamente elementos que associados aos existentes permitirão explicitar a contemporaneidade mais acertadamente.

Hoje, enquanto se especula acerca de um futuro que se pretende diferente, o mesmo já está sendo moldado com os traumas e as excitações colectivas que dominam o presente. E isso sob a desatenção das sociedades de consumo. Trata-se de um futuro projectado com as variáveis do presente. Uma duplicação moldada a partir dos desejos actuais que se pretendem com sentidos diferentes daqueles que marcam hoje o presente.


O uso desviante e o uso concreto

O pensamento relativo a intenção de executar uma tarefa é geralmente acompanhado por uma noção intuitiva acerca do tipo de objecto que se deve utilizar para cumprir com a mesma. Quando se tem sede por exemplo, utiliza-se o copo para beber. Para cortar uma peça de carne recorre-se a faca. Ou quando chove, o guarda-chuva é aquele objecto que se transporta para abrigar da chuva. Porém, existem objectos cuja complexidade os torna mais difíceis de utilizar. Apesar de complexos, eles são no entanto decifráveis, por vezes de forma intuitiva até, conseguindo-se deduzir com maior ou menor grau de dificuldade aferir a função para a qual se propõem. Esta forma intuitiva de interpretar os objectos, advém sobretudo de um conhecimento cognitivo proveniente de experiências de usos. De uma consciência cultural impregnada de regras que regem as interacções entre o utilizador e os objectos, assegurando um uso adequado nos diversos contextos em que estes surgem.

No entanto, apesar de existir uma percepção normativa que sugere uma correcta usabilidade dos objectos, é comum haver interpretações que levem a que o objecto seja submetido a usos diferentes daquele para o qual foi pensado. Por exemplo, perante o senso comum da usabilidade, a cadeira é tida como um objecto que serve para sentar. No entanto, a mesma é muitas utilizada para pendurar um casaco, assumindo o papel de cabide. Com a folha de papel ocorre o mesmo. Geralmente a folha é percepcionada como sendo um suporte de escrita ou de desenho, sendo no entanto, frequentemente utilizada como calço para sustentar uma peça desnivelada ou servir de cunho para manter uma porta aberta.

Assim, o dia-a-dia é composto por inúmeras situações que contrapõem aquilo a que se pode definir de utilização concreta dos objectos. Isto devido a forma como os mesmos são percepcionados e consequentemente utilizados. Este uso intencional que contraria a regra comum da usabilidade, permite deduzir que os objectos estão sujeitos a constantes variáveis, sendo estas perceptíveis através de desvios que representam a transição da função principal dos objectos para outras completamente diferentes. Ou seja, um uso desviativo dos referenciais da usabilidade pré-estabelecidos.

O manual de instruções/utilização é talvez o exemplo que melhor permite testemunhar a existência de desvios. Para além de conter instruções claras acerca da utilização correcta dos objectos, o mesmo inclui recomendações acerca dos potenciais usos desviativos ao qual o objecto não deve ser submetido . Estas recomendações não são mais do que o reconhecimento factual de que o objecto é algo que está sujeito a desvios de utilização. Certos fabricantes para evitar sanções judiciais impostas pela não contemplação de usos desviativos, optam por redigir autenticas bíblias de instruções no sentido de salvaguardar denúncias e responsabilidades face a usos desviativos que podem resultar em riscos para a integridade física dos utilizadores. Recentemente, estas preocupações extrapolaram para outras dimensões. Exemplo disso é a forma como as autoridades em certos países optaram por restringir o acesso de objectos e produtos nos transportes aéreos comerciais, isto com o intuito de minimizar a aplicabilidade desviativa dos mesmos .

Num mundo onde cada vez mais surge informação e objectos, a potencialidade dos usos desviativos parece crescer proporcionalmente. Os jogos virtuais por exemplo têm estado submetidos a usos completamente díspares do princípio do entretenimento, conceito esse que lhe deu origem. Hoje, os jogos virtuais alimentam esquemas na qual é possível desenvolver vidas paralelas virtuais que se desviam dos acontecimentos do mundo real. Ou seja, um mundo virtual que se insere dentro do mundo real. Uma forma desejável de explorar as potencialidades de um produto que certamente irá marcar o século XXI.

Com isto pode aferir-se que a percepção normativa que tem vindo a regular a utilização dos objectos é algo que está a sofrer mutações. Isto na medida em que o uso desviativo tem vindo a assumir uma amplitude social mais abrangente. Os desvios que têm vindo a marcar os países mais industrializados estão a expandir-se para além do perímetro da regulamentação. Por sua vez, nos países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, os desvios têm ocorrido mais dentro de um contexto de sobrevivência, sobretudo devido a pobreza. Este desdobramento perceptivo no qual resulta o desdobramento funcional atribui aos objectos um significado diferente daquele a que foi pensado, conferindo-lhe um outro valor. Um valor objectivo resultante da subjectividade. Segundo estudos levados a cabo pela professora Uta Brandes, os objectos apenas passam a adquirir um verdadeiro significado no momento em que estes são submetidos a um uso concreto. Isto é, um uso enquadrado e mediado segundo uma intenção específica. Assim, os desdobramentos aos quais os objectos estão submetidos – o desdobramento perceptivo, o desdobramento da usabilidade e o desdobramento valorativo passam a ser algo que se justapõe as intenções dos designers. Ou seja, o uso concreto.

Nesta modernidade onde «a violência é libertadora: o deserto urbano está a transformar-se numa selva vibrante, onde todos têm liberdade para descobrir uma nova autonomia, tal como, um uso comunicativo excessivo de gestos corporais, de objectos e desejos» , os objectos sem dúvida alguma estão a assumir um novo sentido. Sentido esse que se desdobra em novos significados através dos usos desviativos. De forma tão evidente que os designers não conseguem presumir acerca dos mesmos. É a não intenção que passa a dominar a intenção. Ou seja, é o surgimento de um design não intencional que se quer intencional.

(Re)interpretar os objectos neste viragem do milénio parece ser algo de mais interessante do que estetizar objectos. Isto porque «precisamos desenvolver uma nova abordagem de design junto dos objectos materiais e imateriais que nos rodeiam», pois «todas as inovações e tácticas de moda tornam o objecto mais frágil e mais efémero». Apesar de controverso, este pensamento detém uma verdade inequívoca. Hoje, as sociedades desenvolvidas consomem mais por estilo do que por necessidade. Ou seja, consome-se mais do que se precisa, fazendo com que haja cada vez mais objectos que não são mais que «(…) uma mera combinação de detalhes, num campo comum de várias séries (…)».

Os irmãos Freitag, enquanto estudantes de design, deram inicio a algo que parece ser um excelente exemplo do que pode vir a ser a reinterpretação do produto. A partir de lonas de atrelados de camião fabricaram sacos leves e estanques que permitissem transportar de bicicleta o material escolar que precisavam para a faculdade. Os sacos que fabricaram foram tão apreciadas pelos colegas, que estes, também quiseram aderir ao conceito. Hoje os sacos Freitag são distribuídos mundialmente enquanto produto massificado que resultam em objectos comunicativos e personalizados através da escolha selectiva de retalhos de lona previamente escolhidos.

Outra vertente interessante de desvios é aquela que tem vinda a ser estudada pelo artista suíço Christian Pierre Kasper em meios onde a pobreza predomina. Segundo este artísta plástico suiço, o uso do objecto ocorre segundo uma óptica de reaproveitamento que serve para colmatar uma necessidade básica que representa em si algo que pode ser considerado como um desdobramento funcional. Função essa que raramente é contemplada de forma consciente na fase concepcional do objecto. Este desvio ocorre mediante uma clara necessidade que recai sobre a falta de poder aquisitivo ou a inexistência de um objecto adaptado a necessidade intrínseca ao momento.

No entanto, o que aqui interessa retratar é sobretudo o sentido que o desvio representa em si. O de um desvio experimental que ocorre mediante uma clara intenção que poderá variar consoante o utilizador, a necessidade ou o contexto sócio-cultural. Segundo Nigel Coates, «(…) um fragmento útil pode ser ligado a outros, tal como guardado numa transição sensível sem cair na armadilha do estilo». Mediante esta afirmação: Valerá a pena continuar a propor objectos estilizados e sem valor acrescentado? Não poderão os objectos existentes serem reinterpretados?

Nesta época contemporânea onde a arte parece hoje estar despojada de um papel de marco significante da história, tal como, de um olhar historicísta, os objectos estes podem vir a assumir o papel que a arte revela não ser capaz de fazer. Se os desdobramentos conseguirem propor novos valores culturais submergindo o enigmático mundo das representações, os objectos estes ganharão um novo estatuto. Talvez tenha chegado a altura de passar da lógica da definição de operações e do abandono da normalização restrita à lógica de um campo de possibilidades, onde todos possam actuar de forma mais activa e afectiva. Um campo onde os designers passam a ser apenas meros mediadores das intervenções dos utilizadores. Se isto acontecer, ai sim, talvez poderemos concluir que «este funeral é para o cadáver errado».


Bibliografia

FOSTER, Hal - Design and Crime and other diatribes, London, Ed. Verso, 2002.

THACKARA, John - Design After Modernism, London, Ed. Thames and Hudson, 1988.

MIRANDA, José Bragança e CRUZ, Maria Teresa – Crítica das Ligações na Era da Técnica, Lisboa, Ed. Tropismos, 2002.

BURDEK, Bernhard E. – Design, História, Teoria e Prática do Design de Produtos, São Paulo, Ed. Edgard Blucher Ltda., 2006.

KASPER, Christian Pierre – Desviando Funções in Rev. Nada (nº5/2005); UR, Lisboa, 2005, pp. 72-77.


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Daniel Monteiro / Novembro 2007

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